31 outubro 2010

Capitão Nascimento, herói grego?


Uma coisa que venho notando é que, à medida que adquiro um conhecimento teórico sobre determinado assunto, mais difícil fica ocupar o papel de simples espectadora. Explico. Embora curse Letras e não Cinema, este é um assunto bastante discutido nas aulas de literatura uma vez que muitos filmes são adaptações de livros ou peças de teatro. Assim, comparando uma arte com a outra, é difícil não perceber algumas estratégias escondidas por trás das tramas.

Há duas semanas fui assistir ao filme Tropa de Elite 2. O que chamou minha atenção logo no início foi a cena quando, surpreendido em uma emboscada, ouvimos a voz do agora Comandante Nascimento dizendo (não recordo as palavras exatas) que na hora da morte vemos toda a nossa vida passar diante dos nossos olhos. Isso é clichê, obviamente, mas mesmo nisso o personagem adianta-se pois admite justamente que sim, isso é clichê.  Enquanto os créditos iniciais vão aparecendo na tela, são mostradas cenas do primeiro filme. Essas cenas servem como retomada (e mesmo promoção) do primeiro filme e também representam a vida que é revivida na hora da morte.

O filme prossegue, dessa vez com um pouco menos de violência gratuita e com uma trama mais elaborada. Nascimento segue tomando decisões e praticando ações que acredita estarem corretas. É essa sua ruína.
É claro que enquanto estava no cinema, acompanhava a ação como uma espectadora comum, com as mesmas reações das outras pessoas. Somente durante a semana um detalhe chamou a minha atenção.
Já no final do filme o Comandante Nascimento, derrotado e destituído de seu lugar, é chamado a depor em uma CPI e então, para alívio da audiência, finalmente abre o jogo e libera todos seus demônios. É a sua catarse.

Catarse, coisa difícil de entender e de explicar. Uma pesquisa rápida no Google trás que Catarse (do grego "kátharsis") é uma palavra utilizada em diversos contextos, como a tragédia, a medicina ou  a psicanálise, que significa "purificação", "evacuação" ou "purgação". Segundo Aristóteles, a catarse refere-se à purificação das almas por meio de uma descarga emocional provocada por um drama.  Segundo o filósofo, para suscitar a catarse era preciso que o herói passasse da dita para a desdita, ou seja, da graça  para a desgraça. E mais ainda: não pode ser por acaso, e sim por uma desmedida, ou seja, por uma ação ou escolha mal  feita do herói.

Um exemplo clássico de catarse é a história de Édipo-Rei que, acreditando estar tomando a ação correta, tenta fugir de uma maldição (Édipo mataria o próprio pai e casaria com a mãe) e acaba indo justamente de encontro a ela. Ao descobrir a verdade Édipo passa por um sofrimento supremo e depois alcança a libertação.

Em uma cena dramática, a catarse que acomete os personagens é “transferida” para a audiência que, de alguma forma, passa tanto pelo sofrimento quanto pela libertação. É essa a função do drama. E é isso o que acontece no filme.
Influenciada pelo primeiro Tropa de Elite, a audiência já sabe do lado de quem vai ficar e, ainda que esse lado seja tão violento quanto o dos bandidos, tudo pode ser justificado pois afinal de contas é o “bem” combatendo o “mal”.

Nascimento acredita que finalmente, ocupando um alto cargo no serviço de inteligência, terá o poder necessário para varrer da cidade do Rio de Janeiro tudo aquilo que a deteriora. Ele realmente crê estar no caminho certo (aqui está a “ação ou escolha mal feita do herói”). E estaria, não fosse um inimigo maior. Um inimigo que nos chama pelo nome, entra na nossa casa, aperta nossa mão e nos rouba sem pegar em armas. Os traficantes, sabemos que não estão a nosso favor, mas e os políticos? Publicamente tudo o que fazem é para o nosso bem. Para o nosso bem?

Com a “ajuda” dos políticos, Nascimento cai em desgraça. O público cai com ele. Durante toda a trama vemos o lado de lá em vantagem e sofremos sentados, sem ação. Para nosso alívio, já na CPI, Nascimento pede a palavra e, diante de uma platéia formada por políticos, despeja tudo o que estava enroscado na sua (nossa) garganta.

É a nossa purificação. Nossa catarse.

27 outubro 2010

Na sala de espera

Fui ao médico. Sentada na sala de espera do consultório aguardava a minha vez de ser atendida. Na mesma sala de espera havia um senhor de cabelos já brancos e uma mulher vestindo calça jeans, moletom e tênis. O senhor, se não me engano, foi consultar-se com a endocrinologista – algo relacionado com diabetes. Já a mulher foi até ali para uma sessão de acupuntura. Estávamos os três em silêncio (não puxo conversa em salas de espera). Providencialmente, como há em todas as salas de espera, naquela também havia revistas. O senhor de cabelos brancos lia uma edição antiga da Veja e a mulher de moletom folheava uma revista Caras. Eu não peguei nenhuma revista. Fiquei adiantando as leituras da faculdade. Não havia ainda me livrado da primeira página quando ouvi um barulho de papel sendo rasgado. Olhei para a mulher de moletom enquanto ela, bem lentamente, rasgava uma página da revista. Com a página já solta ela a dobrou no meio, e no meio novamente e guardou-a no bolso. Eu fiquei ali, olhando para aquela cena e pensando que aquilo era uma tremenda falta de educação. Não pelo valor da revista velha, que é com certeza quase nenhum, e nem pelas outras pessoas que não poderão ler aquela página pois certamente, ainda que pudessem, dificilmente o fariam. Foi simplesmente uma falta de educação. Ainda que não tenham valor, aquelas revistas estavam ali porque alguém se preocupou em deixá-las acessíveis para aqueles que quisessem lê-las. É um bem de uso comum e como tal deve ser usado, conservado e disponibilizado para o próximo. A mulher do moletom poderia, já que pareceu gostar tanto da tal página, ter ido até a recepcionista e perguntado se podia ficar com aquela página ou até com a revista inteira. Com certeza não haveria nenhum problema nisso.  Será que estou exagerando, afinal era só uma revista velha?


Sinto que não. O que me fez pensar foi a atitude totalmente desprovida de cuidado e atenção com uma coisa que, apesar  de não ser de ninguém, é de todos. Ela rasgou aquela folha com um descaso que fazia tempo eu não notava em alguém. Foi  um pequeno ato egoísta, um quase imperceptível ato egoísta, concordo. 

Mas tudo começa pequeno, não é verdade?

15 outubro 2010

Hoje é o dia deles (e o meu também)

Quando eu tinha uns oito ou nove anos de vez em quando alguém aparecia com a seguinte pergunta: O que você quer ser quando crescer? Não tenho uma boa lembrança do que os garotos respondiam, mas poucos, felizmente, diziam querer ser jogadores de futebol. Já as meninas variavam suas respostas entre modelo e professora, algumas chegando até mesmo a querer ser as duas coisas ao mesmo tempo (hoje eu teria medo de fazer tal pergunta pois a resposta poderia ser algo do tipo participante de reality show ou mulher de pagodeiro e/ou de jogador de futebol).

Devo confessar que eu e minhas amigas sempre brincávamos de “modelo”. Inventávamos uma passarela, criávamos nomes artísticos e esbanjávamos toda a graça e o charme que somente uma menina de oito anos pode ter. Mas bem lá no fundo o que eu queria mesmo era ser professora. As professoras eram para mim um porto seguro fora de casa. Algumas eram bravas, outras exigentes, mas todas tinham algo em comum: demonstravam ter amor pela profissão, coisa rara nos dias de hoje. Não vou aqui discutir questões como remuneração, reconhecimento e qualidade do ensino, mas se o número de pessoas que escolhem essa profissão diminuiu, algum bom motivo existe para isso.

Mas quero falar hoje sobre minha troca de papéis: de aluna passei a (quase) professora. Aquele desejo de criança ficou ali guardado por muitos anos. Terminei o ensino fundamental, o médio, fiquei grávida, fui trabalhar e um dia me deu aquela vontade louca de voltar a estudar. Fiz vestibular e passei para cursar Letras na UFPR, mais especificamente Inglês. Quero deixar claro que quase sempre estudei em escolas públicas e, sendo assim, o ensino de Língua Inglesa nunca foi prioridade. Ano após ano aprendia e desaprendia o verbo to be, uma eterna recorrência. Avanço significativo no aprendizado da língua estrangeira não tive quase nenhum. Fiz aqui e ali, quando sobrava algum dinheiro, cursos em escolas de idioma, mas nunca passei do segundo nível. Foi assim, com pouco inglês mas muita vontade, que entrei na faculdade. O primeiro dia de aula, lembro-me bem, foi um dos piores dias do curso. A professora despejava seu inglês em cima dos alunos e os alunos faziam uma cara do tipo “o que eu estou fazendo aqui?”. Havia na turma alunos com um inglês mais avançado, o que tornava as aulas ainda mais difíceis para mim. Terminei aquele meu primeiro dia na faculdade com uma certeza: aqueles próximos cinco anos não seriam fáceis.

Decidi correr por fora e me matriculei no curso de inglês do centro de línguas da Universidade. Trabalhava durante todo o dia, ia para a faculdade à noite e aos sábados para o curso de inglês. Os avanços aconteciam, mas eram tímidos. Muitas vezes pensei em desistir do Inglês e cursar somente o Português. Mas eu não podia fazer isso. Desde de criança, nas minhas brincadeiras, eu fingia falar inglês, ou algo que eu pensava ser isso. Enrolava bem a língua e saía conversando com bonecas e amigos imaginários.

Guardei a insegurança num cantinho, segui em frente e acho, tive mais acertos que erros. A prova de fogo aconteceu este semestre. Quando se está na posição de aluno, ainda que as coisas sejam difíceis, você tem a desculpa de que ainda está aprendendo ou, a justificativa mais fácil, que a culpa é do professor. Mas quando se está do lado de cá da sala de aula? Para qual lado correr quando se tem uma turma inteira com a confiança de que você sabe tudo (lembram? minhas professoras eram meu porto seguro fora de casa)?. Pela primeira vez estive do lado de cá da sala de aula e senti um misto de medo e realização. Medo, pois hoje sei que professores não sabem tudo e, ainda que não tenha saído da faculdade (o fim está próximo, e com isso me vem um misto de alívio e tristeza), sinto-me realizada por saber que aquela caloura que não sabia quase nada hoje sabe que precisa aprender mais a cada momento para quem sabe, um dia, ser o porto seguro de alguém.