Uma coisa que venho notando é que, à medida que adquiro um conhecimento teórico sobre determinado assunto, mais difícil fica ocupar o papel de simples espectadora. Explico. Embora curse Letras e não Cinema, este é um assunto bastante discutido nas aulas de literatura uma vez que muitos filmes são adaptações de livros ou peças de teatro. Assim, comparando uma arte com a outra, é difícil não perceber algumas estratégias escondidas por trás das tramas.
Há duas semanas fui assistir ao filme Tropa de Elite 2. O que chamou minha atenção logo no início foi a cena quando, surpreendido em uma emboscada, ouvimos a voz do agora Comandante Nascimento dizendo (não recordo as palavras exatas) que na hora da morte vemos toda a nossa vida passar diante dos nossos olhos. Isso é clichê, obviamente, mas mesmo nisso o personagem adianta-se pois admite justamente que sim, isso é clichê. Enquanto os créditos iniciais vão aparecendo na tela, são mostradas cenas do primeiro filme. Essas cenas servem como retomada (e mesmo promoção) do primeiro filme e também representam a vida que é revivida na hora da morte.
O filme prossegue, dessa vez com um pouco menos de violência gratuita e com uma trama mais elaborada. Nascimento segue tomando decisões e praticando ações que acredita estarem corretas. É essa sua ruína.
É claro que enquanto estava no cinema, acompanhava a ação como uma espectadora comum, com as mesmas reações das outras pessoas. Somente durante a semana um detalhe chamou a minha atenção.
Já no final do filme o Comandante Nascimento, derrotado e destituído de seu lugar, é chamado a depor em uma CPI e então, para alívio da audiência, finalmente abre o jogo e libera todos seus demônios. É a sua catarse.
Catarse, coisa difícil de entender e de explicar. Uma pesquisa rápida no Google trás que Catarse (do grego "kátharsis") é uma palavra utilizada em diversos contextos, como a tragédia, a medicina ou a psicanálise, que significa "purificação", "evacuação" ou "purgação". Segundo Aristóteles, a catarse refere-se à purificação das almas por meio de uma descarga emocional provocada por um drama. Segundo o filósofo, para suscitar a catarse era preciso que o herói passasse da dita para a desdita, ou seja, da graça para a desgraça. E mais ainda: não pode ser por acaso, e sim por uma desmedida, ou seja, por uma ação ou escolha mal feita do herói.
Um exemplo clássico de catarse é a história de Édipo-Rei que, acreditando estar tomando a ação correta, tenta fugir de uma maldição (Édipo mataria o próprio pai e casaria com a mãe) e acaba indo justamente de encontro a ela. Ao descobrir a verdade Édipo passa por um sofrimento supremo e depois alcança a libertação.
Em uma cena dramática, a catarse que acomete os personagens é “transferida” para a audiência que, de alguma forma, passa tanto pelo sofrimento quanto pela libertação. É essa a função do drama. E é isso o que acontece no filme.
Influenciada pelo primeiro Tropa de Elite, a audiência já sabe do lado de quem vai ficar e, ainda que esse lado seja tão violento quanto o dos bandidos, tudo pode ser justificado pois afinal de contas é o “bem” combatendo o “mal”.
Nascimento acredita que finalmente, ocupando um alto cargo no serviço de inteligência, terá o poder necessário para varrer da cidade do Rio de Janeiro tudo aquilo que a deteriora. Ele realmente crê estar no caminho certo (aqui está a “ação ou escolha mal feita do herói”). E estaria, não fosse um inimigo maior. Um inimigo que nos chama pelo nome, entra na nossa casa, aperta nossa mão e nos rouba sem pegar em armas. Os traficantes, sabemos que não estão a nosso favor, mas e os políticos? Publicamente tudo o que fazem é para o nosso bem. Para o nosso bem?
Com a “ajuda” dos políticos, Nascimento cai em desgraça. O público cai com ele. Durante toda a trama vemos o lado de lá em vantagem e sofremos sentados, sem ação. Para nosso alívio, já na CPI, Nascimento pede a palavra e, diante de uma platéia formada por políticos, despeja tudo o que estava enroscado na sua (nossa) garganta.
É a nossa purificação. Nossa catarse.
2 comentários:
mto bom, parabéns!
E sair do cinema e se deparar com o mesmo inimigo apontando uma arma na sua cabeça, dizendo "escolha!" enquanto você está em frente às urnas? Foi com esse pensamento que fui votar, um dia após ter assistido ao filme.
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